INTRODUÇÃO Eduardo Levy*
POR QUE AS IDEIAS DE ESQUERDA NÃO
FUNCIONAM?
Que o tamanho reduzido desta obra não engane ninguém: parafraseando
Churchill, nunca na história das ideias humanas tanto foi dito com tão
poucas palavras. O livro que o leitor tem em mãos é um tesouro; concebido
como um panfleto, e não como tratado científico, expõe e desenvolve, com
clareza raras vezes igualada, ideias de filósofos menos acessíveis, como
John Locke e Adam Smith.
Mas não pense que A lei é uma peça de museu ou
mera curiosidade histórica: publicado na França em 1850, o livro é tão
importante e atual hoje quanto foi na época de sua publicação, pois, em
grande medida, como os extensos comentários ao texto pretendem
mostrar, os problemas de Bastiat são os nossos problemas e seus inimigos
são os nossos inimigos.
O argumento central do livro é bastante simples: os homens têm certos
direitos naturais que precedem toda a legislação escrita. São eles a vida, a
liberdade e a propriedade. Para proteger esses direitos, todo homem tem
direito de se proteger de quem os ameaça, isto é, à legítima defesa.
A lei,
que aqui significa às vezes o Estado, às vezes a Constituição, é a
organização coletiva do direito à legítima defesa; sua função, seus limites e
sua legitimidade derivam do direito individual à legítima defesa. Em outras
palavras, a única função da lei é fazer com que reine a justiça — na verdade,
impedir que reine a injustiça. Qualquer outro uso que se dê à lei contradiz e
impede o direito à legítima defesa, pois, necessariamente, ferirá a vida, a
liberdade ou a propriedade.
Quando a lei extrapola essas funções, ocorre
opressão ou espoliação legal. Embora “espoliação”, em bom português,
signifique roubo, a palavra tem, tanto no português quanto no francês, um
significado jurídico preciso, segundo o Houaiss, de: “ato de privar alguém
de algo que lhe pertence ou a que tem direito por meio de fraude ou
violência”, e é nesse sentido que Bastiat a emprega.
Espoliação, ele explica,
ocorre sempre que a lei tira de alguém o que lhe pertence para dar a outro
a quem não pertence, agindo de modo tal que um cidadão, se agisse do
mesmo modo, cometeria um crime. Quando a lei começa a ser usada como
instrumento de espoliação, a atividade legislativa se torna uma disputa
entre vários grupos para se apoderar dela e espoliar os outros. Nesse caso,
a liberdade é ferida, a prosperidade é impedida e a estabilidade é
impossível.
No entanto, constata Bastiat, é precisamente isso que ocorre em
toda a parte: a corrupção da lei, posta a serviço de todo tipo de cobiça. Esse
é o fenômeno analisado no livro.
Para Bastiat, a liberdade só é liberdade quando é negativa, isto é,
quando é ausência de coerção e obstáculo; ela não dá nada propriamente,
apenas impede que algo seja tirado de alguém. (Mais sobre a diferença
entre liberdade negativa e positiva nos comentários ao texto.)
Assim,
naturalmente, Bastiat via a maior ameaça à liberdade no ente que detém o
uso da força e, portanto, o poder de exercer coerção e impor obstáculos: o
Estado. Por isso, volta-se contra todos aqueles que querem dar mais poder
ao Estado: os intervencionistas, os planejadores, os protecionistas e os
socialistas.
Desde 1850, muita água rolou: os planejadores e os socialistas
vieram a controlar metade do mundo, o que resultou não apenas em
opressão e miséria, como previsto por Bastiat, mas também na morte de
100 milhões de pessoas, como pode ser visto com mais detalhes em O livro
negro do comunismo (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999). Os países que
se tornaram ricos foram aqueles que mais apostaram na liberdade tal como
descrita por Bastiat; índices baseados em critérios objetivos mostram
correlação direta entre liberdade econômica e riqueza, progresso e justiça
social (Como pode ser visto no Index of Economic Freedom [Índice de
Liberdade Econômica], disponível em www.heritage.org/index/).
Assim,
este livro teve o melhor destino que um livro teórico pode ter: a prática
provou que ele estava certo em um grau muito maior do que seu autor
poderia imaginar. No entanto, a legislação em vigor hoje em países
supostamente democráticos seria descrita por Bastiat como socialista,
como um sistema de espoliação organizado e muito mais amplo do que
poderia imaginar em seus piores pesadelos.
Não é de se espantar, pois, que a política nesses países não passe de
uma disputa entre diversos grupos de interesse para se apoderar da lei e
espoliar em seu próprio favor: não existe mais o “bem comum”, apenas o
bem dos grupos específicos. Além disso, quase todos esses países têm
dívidas astronômicas, sistemas previdenciários insustentáveis no longo
prazo e vivem a um passo do caos social.
Examinem-se profundamente as
causas de tal cenário e ficará provado que Bastiat estava certo.
Com relação ao Brasil, ele estava mais certo ainda: o país ocupava a
122
a posição no Índice de Liberdade Econômica da Heritage Foundation em
2016, mais perto da Venezuela (176
a
) e da Coreia do Norte (178
a
) do que
do Chile (7
a
).
A posição não é inexplicável: nossa constituição garante mais
“direitos” que quase qualquer outra no mundo; o Estado se mete em todos
os aspectos da vida econômica e privada, desejando regular até mesmo o
que o cidadão pode comer; abrir uma empresa exige enfrentar uma
burocracia tão vasta que é tarefa quase impossível; mantê-la aberta então é
ainda pior; nossa legislação trabalhista é tão restritiva que joga mais da
metade dos trabalhadores para a informalidade, em um sistema de
microempresas que nada mais é que uma forma de fugir dos encargos
trabalhistas; nossa legislação tributária é tão complexa que nem os
especialistas a dominam; nosso governo é dono de centenas de empresas e
dispõe de mais cargos comissionados (23 941) que países com orçamento
muito maior, como os eua (8 000) e a França (4 800).
Embora o cenário venha piorando nos últimos anos, desde a formação
do país sempre esteve impregnada na nossa cultura a ideia de que o Estado
é a fonte de todos os bens e o responsável por todos os males, devendo
controlar tudo, regularizar tudo, intrometer-se em tudo. Diante disso, não
seria surpresa nenhuma para Bastiat, nem será para quem ler este livro,
nossa extraordinária instabilidade política. Será que já não é hora de mudar
de rumo e seguir um caminho simples, de eficácia amplamente
comprovada, para a prosperidade e a justiça?
BASTIAT E O LIBERALISMO CLÁSSICO
Claude Frédéric Bastiat nasceu em 30 de junho de 1801, em Bayonne,
França. Filho de um rico comerciante, foi criado por um tio, pois sua mãe
morrera quando tinha sete anos e seu pai, quando tinha nove. Deixou a
escola sem se formar aos dezessete anos para trabalhar na firma comercial
do tio. Logo depois, descobriu o liberalismo clássico e começou a estudar
economia.
Publicou vários trabalhos em defesa do livre-comércio e lançou,
em Paris, em 1846, Le Libre Échange, um jornal dedicado a essa causa. Em
1848, tornou-se deputado da Assembleia Constituinte, mas acabou
renunciando em 1850 devido ao estado deteriorado de sua saúde.
Morreu
em 24 de dezembro de 1850, de tuberculose, em Roma, aos 49 anos.
Um dos economistas mais influentes de todos os tempos, Bastiat deixou
uma extensa obra dedicada à defesa da liberdade e à contestação de várias
falácias econômicas, além de ter formulado ou aprofundado conceitos
como o custo de oportunidade, a falácia da janela quebrada e a lei das
consequências não intencionais.
Embora Bastiat tenha feito contribuições originais ao liberalismo
clássico em centenas de artigos e alguns livros, A lei é, antes de tudo, uma
exposição e um resumo extremamente claro e didático, além de uma
aplicação a diversos casos concretos das ideias de outros pensadores,
notadamente John Locke e Adam Smith. Assim, este livro serve como uma
excelente introdução ao liberalismo clássico, corrente político-econômica
para a qual a liberdade individual é o valor político fundamental e o
principal promotor da riqueza, da dignidade e do progresso.
Desse modo,
os liberais clássicos defendem o individualismo, a democracia
representativa, os direitos civis, a propriedade privada e o mínimo de
intervenção estatal possível na economia e na vida privada dos cidadãos.
Para eles, cada pessoa, ao buscar satisfazer seus próprios interesses,
contribuirá para a riqueza geral da sociedade, e as interações livres entre
as pessoas no mercado são o melhor regulador possível da atividade
econômica.
Entre os herdeiros intelectuais mais proeminentes do
liberalismo clássico estão a Escola Austríaca (que tem Ludwig von Mises e
Friedrich Hayek entre seus representantes), a Escola de Chicago (da qual
faz parte Milton Friedman) e os libertários ou anarcocapitalistas (que inclui
Murray N. Rothbard). Embora haja diferenças substanciais entre eles, todos
compartilham os mesmos princípios fundamentais.
Aqui se deve fazer uma distinção importante: o termo “liberal” designa
e designou historicamente muitas visões diferentes, às vezes, até opostas.
Nos Estados Unidos, veio a significar algo muito diferente do que queremos
dizer neste livro com “liberal” e do que isso significa na Inglaterra e no
Brasil.
Originalmente, “liberal” é quem defende a economia de mercado, as
liberdades individuais e o mínimo de intervenção estatal na economia e na
vida privada. No entanto, nos Estados Unidos, passou a significar
precisamente o oposto: pessoas que defendem uma presença forte do
Estado tanto na economia quanto na vida privada, além de limitações à
economia de mercado. Muitas vezes, em livros e artigos, o termo é
traduzido de modo incorreto para o português como “liberal”, sem
alterações, causando sérios mal-entendidos.
Por isso, é preciso prestar
atenção à linguagem: muitas vezes, “liberal” quer dizer “de esquerda”. Em
consequência, alguns liberais passaram a se referir a si mesmos como
conservadores, libertários ou anarcocapitalistas. Essas três palavras, no
entanto, também têm significados próprios e podem designar visões muito
diferentes do liberalismo. Estamos, aqui, em uma verdadeira Torre de
Babel.
Por fim, ainda que o liberalismo, por razões de que não convém tratar
aqui, tenha péssima fama, a realidade não cessa de lhe dar razão: os países
ricos e prósperos, onde há menos pobreza e melhor qualidade de vida para
todos são aqueles onde vigora o capitalismo, em que a intervenção estatal é
a menor possível e a liberdade individual é valorizada.
O Índice de
Liberdade Econômica da Fundação Heritage não deixa dúvidas quanto a
esse ponto. A simples observação mostra que os países mais ricos do
mundo são os mais liberais, assim como são países em franco
desenvolvimento. Os chamados “Tigres Asiáticos” enriqueceram em pouco
tempo ao aplicar o receituário liberal. O Chile é um dos países mais
desenvolvidos da América Latina (43
o
lugar em idh, enquanto o Brasil está
no 75
o
) e é o único a aplicar o receituário liberal há décadas.
Há exemplos
negativos: a maior tentativa da história humana de planejar todos os
aspectos da vida e da economia, a União Soviética, terminou em
ineficiência, pobreza, opressão, morticínio e colapso. A tentativa de
instaurar um “socialismo do século xxi” na Venezuela resultou em uma
crise econômica e social de proporções inéditas. Os países que ainda
mantêm regimes de inspiração socialista, como Cuba e Coreia do Norte,
estão entre os mais pobres e opressores do mundo.
É impossível, com tantos dados e exemplos práticos, negar as
qualidades bastante superiores do liberalismo na promoção da riqueza, da
dignidade e do bem-estar. A lei é o melhor caminho para começar a
compreender isso.
*Eduardo Levy, 27, é tradutor e professor de inglês. Estudou Filosofia e Letras na
Universidade Federal de Minas Gerais além de artes liberais e literatura na
Universidade de Wisconsin (EUA), mas com interesses e estudos em diversas outras
áreas.