Do livro Ecce Homo por Louis Claude de Saint Martin, publicado pela Sociedade das Ciências Antigas
Capítulo VII
O Príncipe das trevas possui o poder funesto, mas verdadeiro, de apoiar suas falsas doutrinas e suas manifestações arbitrárias nos diversos testemunhos das Sagradas Escrituras. Com armas análogas, procurou seduzir o homem Reparador e todos que, à semelhança dos homens superficiais e crédulos, não se alimentam do espírito para se defenderem das ciladas da letra, mostrando-se submetidos mais à tradição do que à lei. Assim, o Príncipe das trevas desvia habilmente nosso pensamento do único ser que devemos adorar, do único ser que deve nos iniciar no seu culto, para que este culto desça sobre seres e nomes inferiores, de quem nos separamos com grande pesar, pois os frutos que nos oferecem são mais fáceis de obter e nos custam somente a adesão passiva, sem análise, orientada pelo impulso do desejo. Dessa forma, ele consegue esconder de nós o humilhante título de Ecce Homo, dizendo-nos que as obras de misericórdia do Senhor acrescentam algo ao nosso ser; anunciando-nos, com facilidade, que essas obras de misericórdia se difundem por nosso intermédio; e exaltando aos nossos olhos a grandeza de nossa santidade e o poder de nossas orações. Ele retarda, assim, qualquer ação direta e pessoal voltada verdadeiramente à nossa ressurreição. De fato, o Príncipe das trevas favorece nosso orgulho e ambiciosa sede de elevarmo-nos e resplandecermos somente através das nossas próprias forças. Ele se transforma na verdadeira e insidiosa figuração da serva capaz de exaltar o nosso amor próprio, como aquela que seguia São Paulo e não cessava de levar com sua adivinhação grandes vantagens aos seus patrões (Atos 16: 16-17 ). O Príncipe engana ainda as nações, como enganou os Judeus falando por meio de seus falsos profetas sobre a paz, quando não existia absolutamente nenhuma paz. Enfim, o Príncipe abusa da superficialidade das pessoas, servindo-se dos vários oráculos que surgem em toda parte para anunciar uma pretensa regeneração terrena considerada por muitos como certa e próxima.
Os profetas e apóstolos disseram que a hora e o Reino de Deus estavam próximos, mas o significado de tal fala se refere a uma proximidade no espaço e não no tempo, como se poderia imaginar. Por outro lado, eles não cessavam de repetir que essa hora e esse reino só seriam atingidos por quem os conquistasse com seu próprio sangue. No mais, os profetas abriam os tesouros da esperança para os homens só depois de induzi-los a enfrentar o combate com a mais firme resolução.
Dificilmente um homem conhecerá as doçuras prometidas para o reino futuro sem que tenha se precipitado no cadinho da regeneração e, assim, saído renovado.
O Reparador, que é o próprio Reino, predicava a penitência e prometia paz às almas somente depois que tivessem obtido seu próprio jugo junto a ele. Ao contrário, os profetas modernos, que são simplesmente homens, anunciam a conquista do Reino como algo tão fácil e seguro, que parece ser possível conquistá-lo por isenção ou por uma simples solicitação. Também fazem parecer aceitável que nos apropriemos de iluminações independente do nosso completo sacrifício e do esforço de todo nosso ser.
De qualquer forma, não precisamos temer os oráculos modernos, que encontram semelhanças entre si, como uma ameaça do Príncipe das trevas. Esse, sabe que um dia chegará o reino da glória e, com perspicácia, tenta nos recordar essa verdade para adquirir credibilidade. Ao mesmo tempo, não fala sobre as lutas árduas que antes de tudo precisamos vislumbrar, o que nos impede de atingir aquele reino glorioso do qual ele mesmo nos fala.
Já não se comportava assim no tempo de Jeremias? Lamentações 2:14 : Teus profetas viram para ti vazio e aparência; não revelaram tua falta para mudar tua sorte, serviram-te oráculos vazios e de sedução. Assim, ele não governava os Judeus no tempo de Isaías? Como atestam as repreensões que Deus dirige à eles através desse profeta em 30:10 de serem como crianças que dizem aos videntes: “Não queirais ver” e aos seus profetas: “ Não procureis ter visões que nos revelem o que é reto. Dizei-nos antes coisas agradáveis , procurai ter visões ilusórias....” Não me surpreenderia se todas essas profecias fossem somente instrumentos de astúcia, adotados pelo nosso inimigo, para retardar o processo de ascensão do homem.
Embora Deus esteja perto de nós, quase todos nós estamos longe de Deus; e operar para nos reaproximarmos dele é tão fatigante, que quase ninguém consegue tomar esse caminho. Como poderia nossa fé não ser facilmente seduzida por nossa preguiça, quando algumas profecias nos mostram a regeneração sob aspectos menos terrificantes? O inimigo, que tem o objetivo único de retardar nosso caminho, certamente não deixaria de oferecer essa atraente idéia para os que já percorrem caminhos extraordinários. Ao suscitar neles uma doce esperança, ele sabe que a falsa alegria recebida antecipadamente parece dizer aos homens que obterão a verdadeira alegria sem esforço e sem o pesado rigor da privação universal, ou seja, sem o terrível mas salutar sentimento do nosso deplorável estado de Ecce Homo.
Naturalmente, é fácil o erro se enraizar na nossa frágil e necessitada humanidade. A sufragar o que sustento, noto ser necessário constatar o quanto para algumas pessoas essas promessas ilusórias animam a coragem e a atividade, para outras têm o efeito contrário. De fato, se a maior parte dos que se abandonam a essa opinião quisesse realmente fazer uma auto-análise, veria o quanto seu entusiasmo se apoia, de um lado, sobre sua preguiça interior, e de outro, sobre a secreta esperança que os tempos felizes chegarão rapidamente e suas culpas pessoais serão aliviadas pelos esforços de todos os escolhidos a se regenerar. Penso que estes seres terão a sensação de serem arrastados pela torrente geral de um grande mar, e creio que a esperança tão sedutora dessa viva felicidade irá adormecer neles a possibilidade de contemplar as duras provas e as terríveis lutas pelas quais cada indivíduo deve passar para conquistar a vitória. Quanto mais a esperança mostra a eles o fim consolador, a que todos nós temos direito de aspirar, mais os difíceis caminhos que os conduzem se ocultam e os induzem a pensar que já chegaram, ao invés de fazê-los percorrer os mais horríveis desertos e de destruir os covis mais perigosos.
Portanto, não é com o objetivo de se maravilharem que esses seres alegram-se contemplando tamanha perspectiva de prazeres, mas ao contrário, seu espírito atrai a alegria antecipadamente e sua alma sente-se como se já possuísse tal alegria.
Mas, se é verdade que podemos obter uma coroa semelhante somente pelo preço do nosso suor e do nosso sangue, é nítido que o espírito que faz tais promessas é um espírito que abusa de nós, buscando nos distrair dos verdadeiros sacrifícios que devemos cumprir. Desse modo, aliviando nossos sacrifícios e trabalhos rumo ao alto, também nos coloca em condição de ver diminuída nossa recompensa no momento de recebê-la. O espírito da sedução adotará todos os meios para criar esse efeito nos seres humanos. E quanto mais tenhamos sofrido e merecido obter nosso verdadeiro prêmio, mais ele estará encerrado e atormentado nos abismos da privação.
O reino dos mil anos citados no Apocalipse, capítulo 20, é a base na qual se apoiam todos que confiam em determinadas promessas. Essas poderiam até se revestir de uma aparência razoável, segundo o texto, se fossem interrompidas no momento certo, determinando-se limites no próprio texto.
Vi então um anjo descer do céu trazendo na mão a chave do abismo e uma grande corrente. Ele agarrou o dragão, a antiga serpente – que é o diabo Satanás – acorrentou-o por mil anos e o atirou dentro do abismo, fechando-o e lacrando-o com um selo para que não seduzisse mais as nações até que os mil anos estivessem terminados. Depois disso, ele deverá ser solto por pouco tempo. Vi então tronos, e aos que neles se sentaram foi dado poder de julgar. Vi também as vidas daqueles que foram decapitados por causa do testemunho de Jesus e da palavra de Deus, e dos que não tinham adorado a besta, nem a sua imagem, e nem recebido a marca sobre a fronte ou na mão: eles voltaram à vida e reinaram com Cristo durante mil anos (20:1-4).
Fica claro, com base nessas palavras, que existem duas regiões distintas para que se cumpram essas diversas promessas. Uma é a Terra visível, que poderá encontrar um pouco de alívio nas suas provações e tentações, durante o período no qual a serpente será acorrentada. A segunda é a região espiritual e invisível do homem terrestre, quando serão reunidos os justos sob o seu chefe divino para julgar os mortos, que ainda não retornaram à vida e não tomaram parte na primeira ressurreição.
Devido àquele estado de alívio passageiro, que a Terra visível irá experimentar, não é necessário que os céus sejam percorridos novamente como um manto comum por que a Terra nunca será devolvida à sua pureza original. E apesar do aprisionamento do seu inimigo, o homem ainda conservará em si mesmo aspectos suficientemente negativos para que o Reino de Deus não se estabeleça por seu intermédio.
O seu alívio será alimentado, no entanto, por aquela assembléia santa e invisível que existirá ainda por mil anos nas regiões superiores àquela em que vive o homem. Por um lado, isso manterá o inimigo no abismo, e por outro, transmitirá mais diretamente aos seres terrestres os raios divinos sob os quais cada coisa será visível. Mas, ao invés dos homens aproveitarem todas essas vantagens, no seu íntimo fermentarão aspirações perversas e, assim, incitarão a cólera divina e se tornarão culpados; tornando-se incapazes, desperdiçarão ainda os últimos auxílios enviados pela misericórdia suprema. Quando o inimigo for libertado das correntes por algum tempo, fará tantas obras de devastação quanto mais os homens houverem estabelecido relações com ele.
Reinará, então, tal estado de desordem, tamanhas injustiças serão derramadas sobre a Terra, que essa conhecerá o fogo do céu enviado por Deus para operar a destruição (20:9). Vi depois um grande trono branco e aquele que nele se assenta. O céu e a terra fugiram de sua presença, sem deixar vestígios. Vi então os mortos, grandes e pequenos, em pé diante do trono, e abriram-se livros. Também foi aberto outro livro, o da vida. Os mortos foram então julgados conforme sua conduta, a partir do que estava escrito nos livros (20: 11-12). A morte e o inferno foram jogados no tanque de fogo. Essa é a Segunda morte, o tanque de fogo. Todo aquele que não foi encontrado escrito no livro da vida, foi lançado no tanque de fogo (20: 13-15). Enfim, descerá a nova Jerusalém (21: 1-3).
Todas as tribulações que antecedem as horríveis desordens do fim dos tempos, representam somente o início dos sofrimentos (Mateus 24) e portanto não produzirão a destruição do mundo visível.
Representarão, pelo contrário, uma tentativa do amor divino em relação aos homens de, através dos flagelos enviados, persuadi-los à penitência. Em seguida, por um período de mil anos esses flagelos serão suspensos, não somente para que o homem possa trabalhar e voltar ao caminho da justiça, mas também para que perceba uma analogia entre o que já aconteceu na sua história universal e espiritual e o que acontece no plano físico da sua vida.
Antes do dilúvio, as Nações viviam em paz, os homens tomavam as mulheres e as mulheres tomavam os maridos. Embora as abominações da raça de Enoc devorassem a Terra tentassem estabelecer o reino do demônio, a cólera de Deus a destruiu. Ao final da guerra de Antioco e Pompeo, os judeus estiveram em paz durante algum tempo sob o governo de Augusto - época do nascimento do Salvador e da realização de sua missão; mas segundo os profetas, uma época em que os Sacerdotes e Doutores eram somente instrumentos de injustiça, ainda que o povo judeu estivesse a ponto de ser exterminado pelos romanos.
Segundo a ordem física, freqüentemente se nota que as dores e os sofrimentos desaparecerem alguns momentos antes da morte. Isso acontece seja por um enfraquecimento da ação do mal, seja para dar a alma a possibilidade de reconhecer e assegurar a própria sorte na penitência, através da aceitação de um sacrifício livre e voluntário. É provável também, que no momento em que as dores do doente se amenizem, instale-se sobre ele um pequeno reino dos mil anos. Ou seja, uma espécie de juízo ou de confronto entre o seu livro da vida e o seu livro da morte. Como a primeira morte particular, esse juízo tem a capacidade de trazer a imagem daquela primeira morte geral que será poderosamente pronunciada no momento do verdadeiro reino dos mil anos. Se o homem particular escapa dessa primeira morte preparatória, é provável que a segunda morte parcial – a primeira morte do Apocalipse – não tenha efeito sobre ele.
Os verdadeiros sofrimentos terão lugar quando o inimigo for libertado, devastando a Terra até a destruição, assim como no homem físico as angústias da morte o apanham e destróem depois do intervalo da suspensão momentânea. Ao invés de levarem os homens culpados ao renovamento de si próprios e ao reino da paz, esses sofrimentos os conduzem à espada do juízo final, que tem lugar somente quando as coisas visíveis e materiais são definitivamente abolidas. De resto, somente após decretado o fim do domínio da materialidade, os justos obterão a completa liberação das regiões das aparências, à semelhança do povo judeu, que saiu do Egito ao entardecer (Deuteronomio 16:6 ).