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Em 1925, o lendário pensador cristão inglês
G. K. Chesterton
(1) afirmou que, se não
houvesse sido pelo surgimento e fortalecimento da igreja cristã, a
Europa teria continuado
pagã, a civilização ocidental
não teria jamais existido na forma como
a conhecemos, e,
culturalmente, "a Europa
seria hoje muito parecida com a Ásia." (2) Chesterton sugeriu
ainda que, seo paganismo clássico houvesse se prolongado atéhoje [no
ocidente]... haveria
ainda pitagóricos ensinando
reencarnação, assim como
ainda há hinduístas ensinando
reencarnação na Ásia. Haveria ainda estóicos criando uma religião a
partir da razão e da
virtude, assim comoainda há confucionistas na Ásia criando uma religiãoa
partir da razão
e da virtude. Haveria ainda
neo-platonistas estudando verdades transcendentes cujo sentido
seria misteriosopara as outras pessoase disputado até mesmo entre eles,
assim como ainda
há budistasna Ásia estudando um transcendentalismo misterioso para os
outrose disputado
até mesmo entre
eles. Haveria ainda apolonianos inteligentes aparentemente adorando o
deus-sol mas explicando quena verdade elesadoram o princípio divino,
assim como ainda
há na Ásia zoroastrianos aparentemente adorandoo sol mas explicando que
estão adorando
a divindade. Haveria ainda dionisíacos dançando selvagemente nas
montanhas, assim como
ainda há na Ásia derviches
dançando selvagemente no deserto. Haveria ainda multidões
indo às festas dos deuses...e haveria muitos deuses para serem
adorados, como há na Ásia,
ainda pagã... Haveria ainda sacrifícios humanos secretos a Moloque,
assim como ainda há
na Ásia sacrifícios humanos secretos à deusa Kali. Haveria ainda muita
feitiçaria, e boa
parte dessa feitiçaria seria magia negra. Haveria ainda muita
admiraçãopor Sêneca,e muita
imitação de Nero, assim comona Ásiaos elevados epigramasde Confúcio
coexistiram com
as torturas chinesas. (3)
Talvez Chesterton nunca tenha chegado a perceber que suas palavras eram
proféticas. A
civilização ocidental há
muito já caminhava a passos largos
para um quadro
impressionantemente semelhante ao pintado por ele, um quadro que hoje é
a reprodução
fiel da religiosidade moderna.
O que Chesterton não
previu foi que o chamado neo-
paganismo teria características muito piores que as do antigo paganismo
— a cosmovisão
religiosa da antigüidade que
havia sido posta
de lado com o
surgimento da igreja e
a
conversão daEuropa ao cristianismo.A casa foi varrida, mas, como nas
palavrasde Cristo
relatadaspor Mateus,o último estado tornou-sepior doque o primeiro (Mt
12.43-45).
I. Ascensãoe Queda do neo-paganismo (e algumas questões metodológicas)
Uma das principais características da chamada Era Moderna (sécs.16–20)
foio surgimento
do neo-paganismo, cuja decadência estamos hoje assistindo naquilo que
tem-se chamadode
"Nova Era". Esse "movimento" religioso não é,
portanto, genuinamente novo, e nem
é na
verdade um movimento, e, acima de tudo, não é de
fato pós-moderno, como alguns têm
sugerido. O pós-modernismo implica
em ir além do beco sem saída
da modernidade e
inclusive da típica religiosidade moderna. (4) A chamada Nova Era pode ser tudo menos
pós-moderna. Pelo contrário,
ela é moderníssima. Mas,
nesta fase de
transição em que
estamos vivendo, ela representa o
modernismo não no seu apogeu, mas sim na
sua mais
completa decadência. (5)
O neo-paganismo não é novidade.
Trata-se, para começo de conversa, da
recuperação e
apropriação da mentalidade religiosa da antigüidade pré-cristã. Como
ironicamente sugeriu
Chesterton, "trata-sede uma profunda verdadeque o mundo antigo era
mais modernoque o
mundo cristão." (6) Isto é, a Idade Moderna está
mais próxima do paganismo que
do
cristianismo. Além disso, o
neo-paganismo não é novo porque
esta recuperação e
apropriação tiveram início há seis séculos atrás, no princípio da
chamada Idade Moderna.
Os primeirosa estarem envolvidos nesse processo de reapropriaçãodo
paganismoforam os
humanistas dos séculos
XV e XVI. Numa
atividade genuinamente arqueológica,
esses
pensadores e filólogos
dedicaram suas vidas à recuperação da literatura e cultura da
antigüidade greco-romana. (7) Essa atividade não é condenável per se.
Porém, uma vez
levada a cabo, permitiu a reapropriação da mentalidade
pagã por parte dos eruditos
europeus da época que sentiam-se
insatisfeitos com o cristianismo e a
religiosidade que
lhes era oferecida. Em parte, essa insatisfação é compreensível, uma vez que a igreja da
época vivia talvez a maior crise
espiritual de sua história. Mas nem todos os humanistas
sentiram-se atraídos pela religiosidade pagã. Muitos consideraram mais
sensato lutar por
uma reforma eclesiásticae ansiar por um avivamento espiritual. Tantoo
avivamento quanto
a reforma vieram por fim a
acontecer, fruto, em grande parte, do
esforço desses mesmos
pioneiros humanistas. Nesse
sentido, os líderes da
Reforma Protestante também
eram
humanistas, semdeixarem de ser cristãos. (8) A verdade, porém, é que a sementedo neo-
paganismo foi igualmente lançada nos
campos da intelectualidade
européia,e os primeiros
frutos maduros dessa semeadura foram colhidos nos séculos subseqüentes,
dando por fim
início ao movimento intelectual conhecido pelo nome de Iluminismo.
O Iluminismo do século XVIII representouo estabelecimento definitivo do
neo-paganismo
como o ideal intelectual por
excelência da modernidade. (9) Todos os
mais importantes
pensadores iluministas ou
rejeitaram o cristianismo
por completo, trocando-o
por uma
mentalidade religiosa pagã (Diderot, D’Holbach, Hume), ou procuraram
adaptar a fé cristã
às concepções helenistas
recém-recuperadas e assimiladas,
produzindo heterodoxias
gritantes como o deísmo (John
Locke, John Toland, Voltaire, La Metrie) e a
teologia
kantiana. (10) A maçonaria é
outra aberração neo-pagã que teve
origem no iluminismo
francês. Tantoos teóricos da Revolução Francesa quantoos
"Pais" federalistas americanos,
teóricos da Revolução Americana, estavam alicerçados na filosofia
iluminista e no neo-
paganismo.O Modernismo havia chegado ao seu apogeu. Os séculos
subseqüentes, XIX e
XX, assistiriam a partir de
então ao
lento declínio da modernidade
(o marxismo e o
existencialismo marcam, por exemplo, e
de formas diferentes,
esse declíno). Entretanto,
nunca o declínio do
neo-paganismo esteve tão
evidente quanto agora,
em que ele se
manifesta em suas
formas mais cruas e vulgares, nos
diferentes componentes desse
conglomerado de noções religiosas pagãsque chamamosde Nova Era.
Cabe-nos, portanto,
enquanto pensadores cristãos,
compreender a natureza do neo-paganismo, um aspecto
importanteda história da teologia moderna,e também da realidade diária
destes temposde
transição emque estamos vivendo.
A Nova Era é, sem dúvida, um fenômeno cultural, mas não é propriamente uma religião,
uma nova organização
religiosa; não possui
líderes explícitos, membros,
estrutura
hierárquica, estatutos, confissãode fé, etc. Diferentementedo que
muitos livros evangélicos
populares queremnos fazer crer,a Nova Era nãoé tampouco uma conspiração
secreta.(11)
Este tipo de
sensacionalismo evangélico patrocinado
pela liderança de
nossas igrejas,
estimulado por outra falácia teológica chamada "batalha
espiritual", possui um grave efeito
nocivo. (12) Nós, cristãos, passamos a
lutar contra um inimigo inexistente, um fantasma,
uma ficçãoda nossa imaginação, em vez de enfrentarmosa verdadeirahorda
que nos cerca.
A miscelânia chamada Nova Era é composta de manifestações neo-pagãs diferentes umas
das outras, que
vão desde popularizações de religiões
orientais como o hinduísmo, o
budismo e o taoísmo,
até as mais
crassas superstições pagãs
como astrologia, o poder
curativo dos cristais,
adivinhações e necromancia.
Nós, brasileiros, muito
antes de
importarmos dos Estados Unidos o
conceito de Nova Era, já estávamos há
muito tempo
acostumados com as formas mais decadentes da religiosidade moderna,
poiso espiritismoé
um excelente exemplo de neo-paganismo. Do ponto de vista apologético,
cada uma dessas
manifestações neo-pagãs deve ser combatidae derrotada individualmente,
e não como uma
amálgamainforme e uma abstração, como freqüentemente tem acontecido.
Isso não significa, por outro
lado, que o fenômeno não possa ser analisado do ponto de
vista antropológico, filosófico ou
teológico. Sem dúvida, cabe-nos buscar compreender o
neo-paganismo em termos genéricos. Isso nãoé contraditório, pois esta
análise não tempor
objetivo a mistura e a confusão das diferentes manifestações neo-pagãs sob um mesmo
rótulo e o subseqüente
confronto apologético com
esta quimera, este
monstro de
Frankenstein, composto de
partes juntadas de diferentes corpos
e origens. Essa
"arqueologia epistemológica" (13) implica em descobrir as
pressuposições fundamentais do
fenômeno, e produzir dessa maneira
um arsenal de
noções filosóficas e teológicas
que
possam de fato auxiliar no
combate específico e individual dessas
diferentes expressões
religiosas neo-pagãs. (14)
II. O Paganismo,o Neo-Paganismoe a Fé Cristã: Esboço de um Estudo
Comparativo
A religiosidade pagã nada mais é que o
espírito humano submetido à força
da gravidade,
isto é, limitado a um estado de
mínima resistência. Em outra palavras, é
a religiosidade
humana no seu estado natural, sofrendo a pressão e o impacto da
Queda em toda a sua
inteireza. (15) O
termo "paganismo" vem
da palavra latina
pagani que significa
"camponeses" ou "gente do campo, do interior".O termo pagani
ganhou a conotação atual
porque esses camponeses foram os
últimos a se converterem
ao cristianismo após sua
instituição no século
IV como religião
oficial do Império
Romano, e os últimos a
abandonarem as crençase práticasda religiosidade greco-romana. (16)É
curioso notarque,
inversamente, o neo-paganismo
teve origem nas cidades, e até hoje é nos grandes centros
urbanos e nos países mais desenvolvidos que o mesmo encontra maior
aceitação e menos
resistência.
É um erro pensar que o
paganismo é uma grande tolice, que
nada tem de aproveitável
(ainda que o decadente
neo-paganismo às vezes
nos deixe essa
impressão). Chesterton
resume brilhantemente a história espiritual da humanidade em uma de suas
frases mais
famosas: "O paganismo eraa melhor coisa que haviano mundo;e a fé
cristã surgiu,e era
melhor ainda.E tudo o mais depois disso tem sido comparativamentepior e
pequeno."(17)
Como sugere Rist, (18) Agostinho, assim como muitos outros intelectuais
convertidos ao
cristianismo nos primeiros séculos da era cristã, "viu sua
conversão não tanto como uma
substituição mas como uma expansão e um enriquecimento de suas posições
anteriores."
(19) Há pelo menos três elementos no paganismo pré-cristão que o
fazem respeitável: (i)
um senso de piedade, (ii)
uma moralidade objetiva e absoluta, e (iii) um
senso de
transcendência, de percepção do divino e de respeito
em face do misterioso.
(20) O
cristianismo resgatouo queo paganismopossuía de melhorà luzda revelação
divina,num
lento processoque teve início no primeiro séculoe seguiu-se atéo fimda
Idade Média. (21)
No neo-paganismo do nosso tempo
esses elementos desapareceram, e o que
sobra é o
invólucro, a superfície, a
superstição vazia e irracional. O neo-paganismo é, portanto, não
somente um anti-cristianismo mas
também um anti-paganismo, por
incrível que pareça.
Analisemos cada um destes elementos isoladamente.
A. Piedade
O sensode piedade (latim pietas)a que estamos nos referindo refere-se
ao instinto religioso
natural de respeito a algo maior que
o ser humano.
Isto implica na humildade de se
reconhecer como parte subordinada do grande
processo e esquema
universal. Vemos o
reflexo dessa mentalidade no neo-paganismo na adoção do chamado modelo
newtoniano.
(22)O resultado disso no paganismoda antigüidade era uma religiosidade
emque a palavra
de ordem era moderação (grego sophrosyne), (23) expressa na frase
"nada em demasia"
inscrita em todos os templos de Apolo, junto ao famoso "conhece-te
a ti mesmo" (24) (o
mesmo sentimento aparece
na expressão aristotélica
in medio virtus).
(25) As religiões
pagãsda Ásiana sua maioria ainda mantém esta tradição de reverência, de
reticênciae de
moderação. A civilização ocidental não pratica nem compreende essa
reverência e o neo-
paganismo, portanto, diferedo seu ancestral neste importante aspecto.
Ao contrário,o neo-
paganismo divinizao homem,é a religiãodo homem comoo novodeus, pregando
"ovalor
infinito do ser humano" e
"a autonomia do pensamento
crítico." (26) O neo-paganismo
confunde-se, portanto, com o
humanismo contemporâneo, o qual se transformou em uma
quase-religião. (27) No movimento
da Nova Era, que
se trata do neo-paganismo
em
avançado estado de putrefação,o humanismo se manifestade forma mais
crassa, como,por
exemplo, no fato de que quase
todas as práticas, terapias e
crenças da Nova Era são
voltadas parao bem-estardo ser humano,para o seu aperfeiçoamento, parao
seu confortoe
prazer. Além disso, há o
pressuposto implícito em todas as diferentes manifestações neo-
pagãsde queo serhumano é capazde resolveros seus problemas espirituais
por si mesmo,
através de exercícios, meditaçãoou utilização "racional" (ou
irracional) de objetos naturais
como plantase cristais.
É evidente queum retorno mais fiel ao paganismo da antigüidade não
seriaa solução paraa
busca religiosa do ser humano
moderno, e muito menos do
ser humano pós-moderno.
Apenasa fé cristã possui aquiloque o ser humano necessitae busca.A
piedade cristã nãoé
somente superior à piedade pagã (piedade esta que, como dissemos, o
neo-paganismo não
possui), masé uma piedade qualitativamente diferente. Um aspecto
fundamentalda piedade
cristã está em reconhecer-se como criatura diante do Criador. Qualquer
piedade que torne
opacaa distinção entreo Criadore as criaturasé inerentemente
incompatível coma piedade
cristã. Como afirmou Chesterton, a natureza não é minha mãe; na
verdade, ela é minha
irmã, como dizia Francisco de
Assis. Mais importante que isso é
o fato de que a piedade
cristã assume como pressupostoa verdade teológicado pecadooriginal. O
ser humano não
é apenas um ser corrompido atéo mais profundo do seu ser, masé também
corrompido em
todos os aspectosdo seu ser, inclusive sua razão, quesofre os chamados
efeitos noéticos do
pecado. Nossa razão não é confiável, somos constantemente condicionados
pelos impulsos
recebidos do meio
em que vivemos,
e somos igualmente impulsionados
por instintos
inconscientes sobre os quais
não temos qualquer
controle. Mas a diferença crucial e
primordial entrea piedade cristãe a piedade pagã estána certeza cristãde
que nãohá nada
que um ser humano possa
fazer para obter o
favor divino. A piedade
pagã tem como
elemento fundamentalo esforço humanopara obtero favor divinopor meio de
sacrifícios,
rituais e promessas.
Infelizmente muitos cristãos deixam-se iludir pela mentalidade pagã
que continua influenciandoa igreja, levando muitosa abraçar uma
cosmovisão pagã, ainda
que sob o disfarce de elementos cristãos. A piedade
cristã tem, como ponto de partida, o
render-se diante da
soberania divina, o tornar-se receptáculo
da graça divina
imerecidamente outorgada àquelesque humildemente se aproximamde Deus
emum atode
arrependimento pelo pecado, contrição sincerae confiançano
perdãodivino.
B. Moralidade
O que chamamos, a seguir,
de moralidade objetiva e absoluta, refere-se ao fato de que os
antigos pagãos que levavama sérioo seu paganismo insistiam na
existênciade leis morais
inquestionáveis, inegociáveis e permanentes. Essas leis morais eram
vistas como naturais,
evidentesna natureza das coisas, descobertas e não criadas pelo homem.
O neo-paganismo
procurou resgatar essa
moralidade racionalista pagã,
levá-la às últimas
conseqüências e
adaptá-laà realidadeda vida moderna. Esse extremo racionalismo acabou
se revertendo em
um irracionalismo, e por fim tornou-se relativista, subjetivista e
pragmático, chegando-se
lentamente à conclusão de que o
ser humano cria suas próprias leis morais, e
que estas
variam conforme o tempo e a
cultura. Os valores morais de um
indivíduo não podem ser
considerados errados, pois não existe um padrão ou norma absolutos que
determinem o
certo e o errado em questões
éticas. A grande imoralidade do ponto
de vista neo-pagão é
justamente dizer que algo é
moralmente errado. O grande erro é dizer
que algum tipo de
comportamentoé errado.O único absolutoé que nãohá absolutos.A única
coisaque deve
levar alguém a
sentir-se culpado é
essa mesma pessoa
sentir-se culpada por algo.
Este relativismo moral de
hoje em dia é o
correspodente moderno do
politeísmo da
antigüidade. O que está
verdadeiramente por trás dessa grande variedade de moralidades,
de bens morais, é uma enorme variedade de deuses modernos: o sucesso, a
felicidade, o
sexo, o dinheiroe o progresso,por exemplo.O neo-paganismo é, portanto,
não apenas uma
forma de humanismo (de divinização do ser humano),
mas também uma
forma de
politeísmo idólatra em que cada
ser humano torna-se um deus, um absoluto
sagrado,
transmissor em vezde receptorda lei moral. (28)
Mas isso não significaque um retornoà moralidade pré-cristãé a
resposta. Essa aliás, tem
sido a proposta da filosofia moderna racionalista no últimos trezentos anos. (29) A ética
cristã compartilha da objetividade e
da absolutividade características
da ética pagã (que o
neo-paganismo não possui), mas as semelhanças terminam aí. É bem verdade que a ética
cristã tem sofrido a má influência da
filosofia racionalista, e tem adquirido dessa forma
uma similaridade à ética pagã maior do
que é recomendável. Mas sob
o prisma correto
percebe-seque os pontos de vista pagãose cristãos são radicalmente
diferentes. Enquantoa
ética racionalista encontra seu fundamento na supremaciae na autonomia
da razão humana,
a ética cristã fundamenta-se na revelação especial de Deus, nas
Escrituras Sagradas.A ética
racionalista, quando teísta,
sugere que Deus
aprova certa atitude ou comportamento
humanos porque eles são bons em si mesmos. Creioque a ética cristã deve
opor-se a esta
cosmovisão e sugerir o oposto,
isto é, que uma certa atitude ou
comportamento humanos
são bons porque Deus os aprova.
Essa inversão ilustra a natureza essencialmente diversa e
em certo sentido oposta das éticas cristãe clássica-pagã.
C. Religiosidade
Finalmente, o senso de transcendência a que em seguida nos referimos é o
maravilhar-se
diantedo mistério,que levavao pagão pré-cristão ao atode adoração. No
mundo moderno,
o sentido, o instinto e a prática da
adoração per se entraram em declínio. Na civilização
ocidental é cada vez menor
o número de pessoas que adoram seja quem
ou o
que for.
Mesmo em nossas igrejas temos visto essa influência nefasta do
neo-paganismo, levando
nossas comunidades a adotar liturgias em que
o sentimento de
reverência cede lugar à
descontração e o bem-estar do
adorador torna-se mais
importante que sua contrição e
dedicação. Os efeitos se fazem presentes também na teologia moderna, emque
as doutrinas
são desmitologizadas, desmiraculizadas e desdivinizadas. Assim,
até mesmo teólogos
cristãos tornaram-se adeptos da mentalidade moderna
neo-pagã, uma vez que
o neo-
paganismo, diferentemente do
velho paganismo da antigüidade, abandonou a
crença no
sobrenatural e no transcendente e tornou-se naturalista e
imanentista. Aos poucos a
religiosidade neo-pagã foi-se tornando, portanto, não somente uma
forma de humanismo
disfarçado e uma re-edição
piorada do politeísmo, mas
também uma forma
popular de
panteísmo. O panteísmo popular
moderno é uma religiosidade muito confortável em que
Deus é transformado numa espécie de "força" à la Guerra nas
Estrelas, disponível sempre
que necessário, masque não incomoda. (30)É convenientepara os seres
humanos verem-se
como "bolhas da grande espuma
divina" em vez de
compreenderem-se como filhos
rebeldesde um Pai divinoe justo, desesperadamente carentesde se
reconciliarem com ele,
e absolutamente impotentes noque se referea essa condição espiritual.O
panteísmo rejeita
qualquer idéia que se assemelhe ao conceito bíblico de pecado porque
pecado implica em
separação entre Deus e o pecador (Rm 3.19-20; 5.12; 8.7-8; 11.32),
e ninguém pode estar
separado da totalidade.
Por isso, não
pode haver temor
de Deus sob uma perspectiva
panteísta. Portanto, do
ponto de vista neo-pagão, o que a
Bíblia chama de "princípio da
sabedoria"(Pv 1.6) é
aquiloque precisa ser erradicado
das mentes acima
de tudo.
A solução, portanto, não se encontra em uma apropriação mais cautelosa
ou mais exata do
paganismo clássico pré-cristão. Apenas a fé cristã possui as respostas
para os problemas
práticos, teóricos e religiosos do mundo de hoje. O senso de
transcendência do paganismo
não pode ser visto
como equivalente ao
senso de transcendência cristão.
Este último é
qualitativamente diferente daquele. Nãoé à toa quea mais explicitamente
pagã de todas as
heterodoxias modernas,o deísmo, seja uma teologiaque enfatizea transcendência
divina ao
preço da imanência divina. A fé
cristã ortodoxa rejeita
ambas as opções
radicais de
transcendência (deísmo)e de imanência
(teologia liberal do século XIX)
das correntes
teológicasque buscarama síntese do paganismo como cristianismo.A
conclusãoa que se
chegaé que o neo-paganismo acabapor cair, ou no racionalismo, ouno
irracionalismo. Os
grandes pensadores cristãos dos últimos séculos, percebendo essa terrível
encruzilhada,
insistiram na necessidadede enfatizara totalidade humana,de salientaro
fatode queo ser
humano precisa ser
compreendido em sua
inteireza, sem ser
dividido, fracionado,
compartimentalizado.O ser humano nãoé apenas razão, ou emoção,ou
vontade,ou corpo,
ou espírito. O ser humano é um todo, e só pode ser compreendido
corretamente se visto
como umtodo. Minha opiniãoé que teorias dicotomistas ou tricotomistas
são racionalismos
que devem ser
rejeitados. Afirmando a unidade
do ser humano, e as
simultâneas e
completas transcendência e
imanência de Deus, o cristianismo não
deixa espaço para
noções panteístas, e
se mostra superior tanto
ao paganismo quanto
ao neo-paganismo.
Post-Scriptum
Como afirmei no início, a chamada Nova Era não é uma conspiração. Mas na unificação
dos inimigos da
fé cristã, a saber,
panteísmo, politeísmo e humanismo,
unificação esta
levada a cabo pelo
neo-paganismo, pode-se perceber a estratégia do inferno, que todavia
não pode prevalecer contraa igreja. Pelo contrário,é a igrejaque
estápor lhe arrombar as
portas (Mt 16.18). No Calvário, quando as forças anti-cristãsdos mundos
grego, romanoe
hebreu se uniram na crucificação de
Cristo (fato este simbolicamente representado na
acusação contra Cristo afixada na cruz, escrita em três línguas: Lc
23.38; Jo 19.19-20), o
triunfo do mal foi também a
derrota do mal, e a morte do Filho de
Deus significou a
redenção do ser humano
(ver Cl 1.13-14). Nós
estávamos condenados pelas
nossas
transgressões, e Deus nos deu
vida em Cristo,
perdoando-nos nossos delitos,
"tendo
canceladoo escrito dedívida que era contranós e que constavade
ordenanças,o qual nos
era prejudicial, removeu-o
inteiramente, encravando-o na
cruz; e, despojando
os
principados e as potestades,
publicamente os expôs ao desprezo, triunfando sobre eles na
cruz" (Cl2.13-15). Certamente,o neo-paganismode nossos dias estará
em breve tão morto
e enterrado quanto o velho paganismo dos antigos está hoje. E o Deus revelado em Jesus
Cristo, aquele que pronuncioua primeira palavra, terá novamentea última
palavra. "Eu sou
o Alfa e o Ômega, diz o Senhor
Deus, aquele que é, que era, e que há de
vir, o Todo-
poderoso" (Ap 1.8).
1 G. K. Chesterton (1874-1936)é um autorque precisa ser mais lido no
Brasil. Chesterton
era um grande amigo de C. S. Lewis. Seus livros ensinam como se faz
filosofia cristã de
primeira qualidade e foram algumas
das melhores respostas
cristãs ao pensamento
moderno. Eu recomendo, por exemplo,os livros Orthodoxy (Nova York:
Doubleday, 1990
[1908]), Heretics
(Londres: G. Lane, 1905)e The Everlasting Man (San Francisco: Ignatius
Press, 1993 [1925]).
2 Chesterton, The
Everlasting Man, 237.
3 Ibid., 237-38. Minha tradução.
4 Para saber
mais sobre o chamado
pós-modernismo, ver Stanley
J. Grenz, Pós-
modernismo: Um Guia para Entendera Filosofia do Nosso Tempo (São Paulo:
VidaNova,
1997). Esse livroé uma boa introdução ao assunto. Outros livrosque
podem serde auxílio
nesse complicado tema filosóficoe cultural são:Brian D. Ingraffia,
PostmodernTheory and
Biblical Theology
(Cambridge, Inglaterra: Cambridge University Press, 1995),
especialmente pp.
167ss.; J. Richard Middleton e Brian J.
Walsh,Truth Is Stranger than It
Used to Be (Downers
Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1995), especialmente a primeira
parte, pp. 7-84;
David S. Dockery,
ed., The Challenge of Postmodernism (Wheaton,
Illinois: BridgePoint,
1995); e Gene Edward Veith,
Jr., Postmodern Times
(Wheaton:
Crossway, 1995). Ver também o
meu artigo "A Morte e a Morte
da Modernidade: Quão
Pós-moderno é o
Posmodernismo?" Fides Reformata 1:2 (Julho-Dezembro 1996), 59-70.
5 O que se chama de modernismo
é a
cosmovisão que prevaleceu durante
os últimos três
séculos, caracterizada pelo
seu cientificismo, historicismo,
racionalismo, e otimismo
humanista, entre outras
coisas. Ver Robert
B. Pippin,
Modernism as a Philosophical
Problem (Oxford:
Blackwell, 1991).
6 Chesterton,
Orthodoxy, 259. Minha tradução.
7 Ver Peter Gay, The
Enlightenment: The Rise of Modern Paganism (Nova York: W. W.
Norton& Company, 1966), 256-321. A teoria básica de Peter Gay
serviu também de base
para este artigo,
isto é, que
"o iluminismo foi
uma mistura volátil de classicismo,
impiedade, e ciência;
les philosophes, resumindo,
eram pagãos modernos." Ibid.,
8.
8 Os especialistas divergem,
contudo, quanto ao
relacionamento e envolvimento entre
humanistase reformadores,e se seria historicamente correto considerar
estesum sub-grupo
daqueles. Ver, por exemplo, os
estudos do erudito calvinista tcheco Josef Bohatec sobre
esse assunto: Die
Religionsphilosophie Kants, 1938,
reimpresso em 1966.
9 Confira Gay, The
Enlightenment,3-27.
10 Ver Immanuel Kant,
Religion within the Limits of Reason Alone (Nova York: Harper
Torchbooks, 1960).
11 Ver, por exemplo, as
populares obras de
ficção de Frank Peretti (e.g.,
Este Mundo
Tenebroso), e livros
como: John Bevere,
The Bait of Satan (Orlando:
Creation House,
1994) e Bob
Larson, Straight Answers on the
New Age (Nashville: Nelson Publishers,
www.universidadedabiblia.com.br
1989). Não que estes livros sejam imprestáveis, ouque seus autores
sejam charlatães. Mas
há uma atitude que
me parece errada
entre os chamados
"profetas da desgraça"
do
evangelicalismo americano, uma vontade de formular teorias místicas e maniqueístas de
conspiraçãoe de uma espécie de "ocultismo cristão"que
considero heterodoxoe prejudicial
paraa saúde espiritual da igreja.
12 Para saber mais sobreo tema "batalha espiritual," vero
livro de David Powlison, Power
Encounters: Reclaiming
Spiritual Warfare (Grand Rapids: Baker, 1995) e
também o livro
de Augustus Nicodemus G. Lopes,O que Você Precisa Sabersobre Batalha
Espiritual (São
Paulo: Editora CulturaCristã, 1997).
13 Aindaque eu esteja aqui fazendouso da expressão cunhada pelopensador
pós-moderno
Michel Foucault em Arqueologia do
Conhecimento, isso não significa que
estou adotando
ipsis litteriso métododo filósofo francês, quepor sinal possui boas
qualidades.
14 O método aqui adotado enquadra-se melhordentro da tradição
estabelecida pelo filósofo
calvinista holandês
Herman Dooyeweerd. Ver, por exemplo, Roots of the Western Culture
(Toronto:
WedgePublishing Foundation, 1979).
15 Vero capítulo
"Christianity and the New Paganism," em Peter Kreeft, Fundamentals of
the Faith: Essays in
Christian Apologetics (San Francisco: Ignatius Press,1988), 102.
16 Ibid.
17 Citado por Kreeft,
Fundamentals of the Faith, 102. Minha tradução. Vero capítulo "The
Escape from Paganism," em
Chesterton, The Everlasting
Man, 232-49, e o
capítulo
"Authority and
the Adventurer," em Orthodoxy, 141-60.
18 John M. Rist, estudiosode Agostinhoe professorna Universidade de
Toronto, Canadá,
é uma das maiores autoridades vivas sobreo pensamento do celebradobispo
de Hipona.
19 John M. Rist,
Augustine: Ancient Thought Baptized (Cambridge, Inglaterra: Cambridge
University Press, 1994),
12. Minha tradução.
Eu creio, todavia, que
é inadequado
interpretar a experiência de conversão
dessa forma. Ainda que haja uma
inegável
continuidade, a conversão implica numa completa transformação do
indivíduo no mais
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íntimo do seu ser, e toda
continuidade que ocorrer tem que ser interpretada à luz dessa
transformação essencial. Na vidado próprio Agostinho podemos ver como
todaa bagagem
trazida do paganismo recebeu em suas mãos uma nova significação. Mas a
continuidade
existe,e talveza melhor forma de explicá-laé perceberque a conversão
representa, não um
giro de 180 graus, mas sim um giro de 360
graus, isto é, a vida prossegue,
e o
indivíduo
inicia, após sua conversão, um longo processo de reavaliação de suas
idéias e concepções
atravésdo qual ele redimensiona sua existência.
20 Kreeft, Fundamentalsof the Faith, 102-106.
21 Uma das questões mais controvertidas da história da
teologia refere-se justamente ao
graude penetraçãoe influência das idéias pagãs durantea construçãodo
edifício teóricoda
teologia cristã. Não existem respostas fáceis para esse complexo
problema. Muito do que
há de melhorna teologia conservadora dos últimos trezentos anos
representaum esforço no
sentido de procurar uma aproximação maiore mais pura ao ensino das
Escrituras, livre dos
preconceitos e distorções provocados
pela influência pagã na igreja e na teologia
cristã
desdeo primeiro século atéos nossos dias.
22 John Locke e Isaac
Newton foram os mais
importantes mentores do
iluminismo.
Todavia, eles funcionaram mais como ícones, símbolos de uma revolução
do pensamento
que propriamente uma influência concreta em termos de idéias que muitas
vezes não eram
conhecidas ou eram mal compreendidas. Ver, por exemplo, o excelente
estudo de Gerd
Buchdahl, The Image of Newton and
Locke in the Age of Reason (Londres: Sheed &
Ward, 1961). A física newtoniana
teve de qualquer modo
um papel importante
no
iluminismo servindode inspiração e paradigma para todas as áreasdo
conhecimento. Boas
introduções para os aspectos
gerais do pensamento newtoniano, e
boas biografias de
Newton (o método biográfico ajuda bastante aqueles que, como eu, têm
dificuldades de
compreender as nuances da física newtoniana),
são Louis T. More, Isaac
Newton: A
Biography (Nova
York: Dover, 1962);
J. D. North,
Isaac Newton (Oxford:
Oxford
University Press,
1967); Richard S. Westfall, The Life of Isaac Newton (Cambridge, Ingl.:
Cambridge University
Press, 1993); A. Rupert Hall, Isaac Newton: Adventurer in Thought
(Oxford: Blackwell,
1992); Frank E.
Manuel, The Religion of
Isaac Newton (Oxford:
Clarendon Press, 1974)
e I. Bernard Cohen, The Newtonian
Revolution (Cambridge, Ingl.:
CambridgeUniversity Press).
23 Veros diálogosde Platão, especialmente Mênone Êutifron.
24 O famoso gnothi seautonde Sócrates.
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25 Ver Aristóteles, Ética a
Nicômaco. Como sugere Chesterton, "o paganismo declarava
quea virtude estava no equilíbrio;o cristianismo declarou quea virtude
estáno conflito:a
colisão de duas paixões aparentemente opostas". Orthodoxy, 92.
"São Francisco, ao louvar
tudo que é bom, conseguia
ser um otimista mais exagerado
que Walt Whitman.
São
Jerônimo, ao condenartoda maldade, era capaz de pintar um quadro ainda
mais escuro do
que Schopenhauer." Ibid., 96. "O leão se deitará com o cordeiro. Mas note que este texto
tem sido interpretado de forma
muito suave. Nós somos constantemente assegurados por
nossas tendências tolstoyanas que,quando o leão se deita como cordeiro,
ele se tornaigual
a um cordeiro. Mas isso é uma anexação brutal e um imperialismo da parte
do cordeiro.
Isso é apenas o cordeiro
absorvendo o leão em vez de o leão
comendo o cordeiro. O
verdadeiro enigma é: pode o leão se deitar ao lado do cordeiro e todavia manter toda sua
ferocidade real? Esse é o enigma
que a igreja tentou resolver; esse é
o milagre que ela
alcançou." Ibid.,
98.
26 Gay, The
Enlightenment, 226.
27 O conceito de quase-religiões foi criadonos anos60 pelo teólogo
neoliberal Paul Tillich
para referir-se a fenômenos secularistas, como, por exemplo, o marxismo, o
nazismo, o
humanismoe o cientificismo.
28 Ver, por exemplo, o volume de
ensaios sobre cristianismo e cultura editado por Os
Guinness e John Seel, No God but God: Breaking with the Idols of our Age (Chicago:
Moody Press, 1992).
29 A ética moderna em geral tem privilegiado uma metodologia
racionalista. Tantoa ética
deontológica de Kant e seus
seguidores, quanto a ética utilitarista dos ingleses Bentham e
Stuart Mill são calcadas na ética pagã, e desconhecem a noção de uma
ética baseada na
revelação especial de Deus. Os pressupostos básicos por trás das éticas
racionalistas são a
supremaciae a autonomia da razão humana.
30 Vera críticaque o celebrado pensador cristão inglêsC. S. Lewis já
fazia nos anos 40a
essa mentalidade em seu livro Miracles(Nova York: Macmillan, 1947).
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